Conquistamos demais e cuidamos de menos. Para onde isso nos poderá levar? Analistas vindos das ciências da Terra nos advertem de que o tempo atual se assemelha muito às épocas de ruptura no processo de evolução, épocas de extinções em massa. Não porque sobre nós pese alguma ameaça cósmica, mas por causa da atividade humana altamente depredadora da natureza. Chegamos a um ponto em que a biosfera está à mercê de nossa decisão. Se queremos continuar a viver, temos de querê-lo e garantir as condições adequadas. Estimativas otimistas estabelecem a data-limite, o ano 203O. A partir dai, a sustentabilidade do sistema Terra não estaria mais garantida. E ai iríamos ao encontro de uma crise geral cujo desfecho é imponderável. Por que chegamos a isso? A resposta mais imediata se prende às revoluções iniciadas no neolítico, há 10 mil anos: a agrícola, a industrial e a do conhecimento/comunicação. Essas revoluções modificaram a face da Terra para bem e para mal. Por um lado, trouxeram imensas comodidades e prolongaram consideravelmente a expectativa de vida. Por outro, depredaram o sistema Terra pela monocultura tecnológica e material e pela desumanização das relações.
A segunda resposta, mais elaborada, procura saber: que sonho o ser humano perseguia com esse imenso processo técnico-científico e cultural? Era o sonho da prosperidade material a ser conseguida pelo poder-dominação sobre a natureza, sobre as riquezas dos povos, sobre a mulher e sobre exploração da força de trabalho. Essa prosperidade trouxe satisfação mas não felicidade, pois foi mais material que espiritual. Destruiu o sentido cordial das coisas e legou-nos devastador vazio existencial. Esse sonho ocupa a agenda central de qualquer governo, também do nosso. E a seguir o ritmo atual, vamos ao encontro de um impasse.
Mas essas respostas, embora objetivas, não vão suficientemente à raiz da questão. Há uma causa mais profunda: a auto-afirmação excessiva sem a integração necessária num todo maior. Auto-afirmação e integração sempre devem vir juntas. Mas predominou a primeira, produzindo a quebra da re-ligação com tudo e com todos. Perdemos o sentido da corrente única da vida e de sua imensa diversidade. Olvidamos a teia das interdependências e a comunhão de todos com a Fonte originária de tudo. Colocamo-nos num pedestal solitário a partir donde pretendemos dominar a Terra e os céus. Eis onde erramos, eis a doença de nosso modo de ser: a centração só no ser humano, no homem sem a mulher e sem a integração no Todo.
Urge refazer o caminho de volta, como filhos pródigos, rumo à comunidade de vida e irmanarmo-nos com todos os seres. Temos de restaurar a re-ligação com o Todo, unir auto-afirmação com integração, numa visão co-evolutiva.
O velho sonho da humanidade é viver sem medo e em paz. A paz é a plenitude que resulta das relações adequadas com tudo, consigo mesmo e com a Fonte. Para isso precisamos nos reencantar com o mistério e a natureza. Esse reencantamento nasce de um novo sentido de ser, de uma nova experiência espiritual. Sua elaboração se dá no âmbito do feminino nos homens e nas mulheres. É o feminino que nos torna sensíveis, espirituais, abertos à cooperação e ao Todo. Ele nos ensina a cuidar de tudo com zelo e amor.
[12/SET/2003]
Leonardo Boff