Sustentabilidade
A História de Portugal contada pelos nossos genes
A análise de certas porções do ADN humano permite recuar no tempo para ter uma ideia, geográfica e temporal, da origem dos portugueses actuais. Por Ana Gerschenfeld, 22/4/11
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O MAPA DAS LETRAS QUE COMPÕEM O CÓDIGO GENÉTICO HUMANO REUTERS |
A receita genética para cozinhar um português moderno: aquecer em lume brando um "caldo" de ADN de celtas, iberos e lusitanos do início da era cristã, acrescentando umas pitadas de genes judeus vindos do Médio Oriente durante o Império Romano. De vez em quando, deitar no tacho alguns genes berberes. Esperar 700 anos e, em seguida, misturar uns punhados de genes de invasores árabes durante cinco séculos. Já no século XIII aumentar bastante o lume e reduzir a introdução de genes árabes (sem esquecer de continuar a polvilhar a mistura com mais genes judeus). A partir de meados do século XV, BAIXAR o lume e ir deitando no caldo umas colheres de genes de escravos subsarianos. No início do século XVI, aumentar novamente o lume da Inquisição durante dois séculos, continuando a acrescentar genes africanos até ao fim do século XIX - e sem nunca esquecer de temperar periodicamente com mais alguns genes judeus (agora chamados "sefarditas").
Em traços largos, esta é a receita de fabrico do ADN dos portugueses de hoje à luz dos mais recentes resultados da genética das populações. É pelo menos uma história possível e foi inspirada na leitura do livro O Património Genético Português (Gradiva, 2009), da autoria da investigadora Luísa Pereira, do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), e da jornalista Filipa Ribeiro.
Mitocôndrias, Y e Cª
Hoje em dia, a genética moderna fornece pistas para seguir o rasto às andanças da espécie humana - e dos portugueses em particular - desde os seus primórdios.
Afinal de contas, cada uma das células do nosso corpo guarda, no seu ADN, a história das gerações que nos antecederam. As lacunas ainda são grandes, mas os avanços das técnicas de sequenciação do ADN já permitiram obter resultados que respondem a muitas interrogações.
A genética das populações estuda as migrações humanas principalmente através das mutações acumuladas em dois bocados específicos do património genético humano: o ADN mitocondrial e o cromossoma Y. O primeiro é um pequeno anel de ADN que se encontra dentro de estruturas chamadas mitocôndrias, que são as "baterias" das células. Quanto ao cromossoma Y, é ele que determina o sexo masculino (as mulheres são XX e os homens XY).
Ambos estes tipos de ADN servem para estudar as características genéticas das populações, porque têm modos de transmissão hereditária muito bem definidos. O ADN mitocondrial tem a particularidade de ser transmitido exclusivamente por via matrilinear - ou seja, pelas mães aos seus filhos de ambos os sexos -, enquanto o cromossoma Y é transmitido pelos pais exclusivamente aos seus filhos do sexo masculino. Isto significa que o ADN das mitocôndrias de qualquer pessoa provém da mãe da mãe da mãe da sua mãe (etc.) e que o ADN do cromossoma Y de qualquer homem provém do pai do pai do pai do seu pai (etc.). E a História de Portugal revista através do prisma genético dá, grosso modo, a receita acima referida.
Segundo resultados publicados em 2004 por Luísa Pereira, António Amorim e colegas (também do Ipatimup) no International Journal of Legal Medicine, o património genético dos portugueses de hoje é composto por 70 a 80 por cento de linhagens europeias antigas. A elas vieram acrescentar-se, mais recentemente, 10 a 20 por cento de linhagens do Médio Oriente, 10 por cento de linhagens norte-africanas masculinas (isto é, de configurações do cromossoma Y características dos homens do Norte de África) e cinco por cento de femininas (ou seja, de configurações mitocondriais características das mulheres do Norte de África). Em particular, existe em Portugal uma linhagem materna, designada U6, característica dos berberes da África do Norte e praticamente ausente no resto de Europa. O perfil genético português fica completo com três a 11 por cento (conforme as regiões do país) de linhagens femininas oriundas da África subsariana.
O tráfico de escravos
Uma história que ficou claramente gravada nos genes dos portugueses actuais foi o envolvimento de Portugal, sobretudo entre meados do século XV e finais do século XVIII - e em menor medida até finais do século XIX - no tráfico de escravos negros africanos. A entrada de escravos em Portugal foi uma das mais elevadas de Europa - e, enquanto as outras potências coloniais europeias, como a Espanha, exportavam escravos para as suas colónias de ultramar, Portugal importava-os para a metrópole. "Em Portugal", escrevem as autoras do livro acima referido, "a inusitada percentagem de escravos chegou a atingir 10 por cento da população do Sul do país em meados do século XVI."
Em 2005, a mesma equipa do Ipatimup confirmou nos genes o que a História de Portugal já contava: num estudo publicado na revista Human Biology, concluíram que existe hoje, efectivamente, uma maior frequência de linhagens africanas no património genético português do que nos vizinhos espanhóis. "Basicamente, Portugal retém mais linhagens subsarianas que a Espanha - [e] há dados históricos de que os espanhóis traficaram escravos especialmente para a América", diz-nos Luísa Pereira.
Muitos resultados da genética batem certo com a História - o que era de esperar. Mas, mesmo assim, já houve surpresas. Em particular, um estudo publicado em 2008 no American Journal of Human Genetics por uma equipa internacional de cientistas - entre os quais se incluía João Lavinha, geneticista do Instituto de Saúde Ricardo Jorge de Lisboa - mostrou que, em média, 35 por cento dos homens no Sul de Portugal e 25 por cento do Norte têm genes judeus sefarditas - e que os homens do Sul têm 15 por cento de ascendência norte-africana e os do Norte 10 por cento. Isto significa, por um lado, que, ao contrário do que se pensava, os judeus portugueses não fugiram, quando foram expulsos pela Inquisição. Fundiram-se na população geral e misturaram-se, sobrevivendo desta forma à intolerância religiosa. E quanto à componente norte-africana, algo de semelhante poderá ter acontecido, embora em menor escala, ao contrário do que nos contam os manuais de História. Os genes dos portugueses de hoje testemunham o que realmente aconteceu...
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